Artigo extraído do livro Hayes, Robert Ames., Nação Armada - A Mística Militar Brasileira; tradução de Delcy G. Doubrawa, Rio de Janeiro, BiBliEx, 1991.
A GUARDA NACIONAL
A criação da Guarda Nacional em 18 de agosto de 1831 revela a mentalidade de elite política brasileira com relação à tradição da nação armada e ao exército regular. Jeanne Berrance de Castro assinala que, quando de sua criação, a Guarda era considerada como uma proteção ao trono brasileiro, em oposição ao Exército "ainda identificado com D. Pedro 1" e "uma fonte de perturbações e de insubordinações". A Guarda era vista como uma incorporação da própria nação. Assim, a Guarda foi criada ao mesmo tempo para se contrapor ao exército regular e para dar um novo segmento à tradição da nação armada.
Havia também indícios da persistência de idéias do tempo colonial a respeito do antigo princípio de exploração das vantagens institucionais, em um contexto militar, para o estabelecimento de um governo. Neste caso, "desde o começo entendeu-se que a missão da Guarda Nacional era a institucionalização de uma nova ordem legal". Fernando Uricoechea associa esta destinação à debilidade do exército profissional "que não era capaz, em face da redução de seus efetivos, de ter uma ação de presença no enorme território da jovem nação". O problema que se apresentava era a dúvida clássica - não se sabia se a sociedade civil estava sendo militarizada ou se a organização militar estava sendo apaisanada. Nas palavras de Uricoechea, "as diretrizes burocráticas contemporâneas militarizaram o estado, enquanto que o estado patrimonial brasileiro militarizou a sociedade civil". Dessa forma, a formação e o emprego da Guarda Nacional criam nova perspectiva para o acesso da elite política do processo de fortalecimento do estado, na época. Na prática, a Guarda era supervisionada por agências administrativas do governo central, mas continuava sendo uma corporação administrada patrimonialmente. Um tipo de paternalismo burocrático híbrido mas essencialmente instável acabou se desenvolvendo com base no pragmatismo. Este pragmatismo era caracterizado por decisões administrativas orientadas mais pela experiência do que pela racionalidade técnica. Em síntese, a fórmula da coesão sem consenso do período colonial parece ter sobrevivido.
No início, como a inspiração para a organização da Guarda era buscada em modelos estrangeiros, seus claros de oficiais eram preenchidos através de eleição, mas esta prática se revelou prejudicial à determinação dos proprietários rurais de controlá-la. As condições interioranas, que se originavam da predominante mentalidade familiar-patriarcal, levavam o povo a "pensar em termos de privilégios pessoais ou de classe, enquanto a noção de obediência aos preceitos legais, em benefício do estado, tinham pouca significação". Em conseqüência, o preenchimento dos claros de oficiais passou a ser feito por indicação.
O relacionamento entre a Guarda Nacional e o exército regular era semelhante ao da antiga milícia como o exército regular do período colonial, em muitos aspectos. Os aristocratas rurais que serviam na Guarda Nacional continuavam a gozar de foro militar ou seja uma espécie de proteção legal oficial. Eles também podiam usar uniformes para participar de paradas ou tomar parte em cerimônias religiosas ou seculares. Organizavam-se programas especiais para aumentar o prestígio da Guarda, sendo-lhe sempre dada precedência sobre o Exército em cerimônias públicas. Ela também tinha prioridade no recebimento de recursos competindo com o Exército.
AS FORÇAS TERRESTRES BRASILEIRAS E A ESTABILIZAÇÃO DO REGIME
Afinal, a necessidade de conter as tendências centrífugas, desencadeadas pelo Ato Adicional de 1834, que contribuíram para a ocorrência de numerosos movimentos revolucionários no período regencial, levou à aprovação da Lei Interpretativa de 1840. Este dispositivo legal passou muitos dos poderes dos governos provinciais, centralizando-os em mãos do governo imperia1. A participação de militares na estabilização do governo central, durante este período, merece algumas considerações em face dos precedentes. José Honório Rodrigues descreve a situação da seguinte maneira:
A indisciplina estava tão generalizada e as conspirações eram tão freqüentes que foi necessário dissolver o Exército, reduzindo a efetivos meramente simbólicos, e criar a Guarda Nacional, adestrada e comandada pelo Maj Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, que foi obrigado a contestar seu pai, o Regente Francisco Lima e Silva, e dedicar todos os seus esforços e apelar para os recursos disciplinares com 0 objetivo de obter a paz, de forma que através das páginas da história do Império o Exército fosse visto apenas como servidor da Constituição e da legalidade.
O papel messiânico desempenhado por Caxias na manutenção da integridade territorial e política brasileiras, salvando assim o país, merece um melhor exame. Foi Caxias quem reduziu drasticamente o Exército (Veja quadro 1), "um conglomerado de elementos heterogêneos e desirmanados" entre os quais "não era possível que o ideal de pátria pudesse florescer".
Nível Real dos Efetivos do Exército de 1830 a 1920 |
1830 |
30.000 |
1871 |
19.000 |
1831 |
14.342 |
1880 |
15.000 |
1841 |
20.925 |
1889 |
13.000 |
1848 |
16.000 |
1892 |
27.000 |
1855 |
20.000 |
1907 |
30.066 |
1863 |
16.000 |
1920 |
45.405 |
1865 |
35.689 |
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Quadro 1. Fonte: Relatórios do Ministério da Guerra e Mapas do Exército, como cita Edmundo Campos Coelho, Em Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira (Rio de Janeiro, Forense - Universitária, 1976), 40 |
Ele selecionou 400 oficiais para constituir o famoso Batalhão Sagrado que empregou como um núcleo a ser apoiado por unidades da Guarda Nacional para sufocar os levantes regionais. Este entrosamento de forças tornou-se importante na tradição da nação armada. Havia uma associação do exército regular com forças paramilitares lutando pelos interesses nacionais; agora, pela primeira vez, isto estava ocorrendo sob a liderança de um oficial de carreira do Exército Brasileiro. No desempenho de sua missão, Caxias revelou conhecimento de traços característicos da sociedade, como, em particular, a transigência e a conciliação. Ao chegar a uma determinada região como objetivo de pacificá-la, ele entrava em contato com os revoltosos para o estabelecimento de diálogo. Esta abordagem conciliatória em geral produzia os resultados desejados e a área voltava a ficar sob controle com um mínimo de derramamento de sangue. Desta forma, Caxias demonstrou possuir qualidades de estadista, como o fez em diversas oportunidades através de sua carreira, em postos que ocupou no governo do Império. Quando era necessário, isto é, quando o emprego da transigência e da conciliação não produziam efeitos, Caxias demonstrava seus dotes militares e solucionava a situação pelo emprego da força. Embora com tirocínio político e com capacidade de atuar na política nacional do Império, ele permaneceu com suas preocupações voltadas para o bem-estar e para os problemas materiais e profissionais do Exército.
O mau tratamento recebido pelo Exército depois da Guerra do Paraguai desiludiu Caxias, mas é fácil visualizar por que ele sintetiza o estereótipo de cidadão-soldado na história do Brasil.
Para apreciar devidamente a mentalidade de Caxias e dos oficiais de sua geração, que seguiram seu exemplo, deve-se considerar que sua índole se amalgamou à idéia de que os oficiais de carreira do Exército constituem uma classe especial para a qual a honra militar é muito importante. Existe um ponto de vista diferente, no qual se considera que em vista do status social dos militares de carreira estar associado ao baixo prestígio do Exército, a geração de Caxias procurou bajular a classe política civil, atuando como guarda pretoriana, pouco se identificando com o Exército. E é verdade que muitos chefes militares tiveram aspirações de estadistas, vários exercendo funções ministeriais e congressistas (Veja quadros 2 e 3).
MINISTROS MILITARES DE 1871 A 1930 |
Período |
Quantidade |
% |
1871-1889 |
33 |
21,21 |
1889-1894 |
66 |
6,06 |
1894-1910 |
40 |
35,00 |
1910-1918 |
50 |
40,00 |
1918-1930 |
24 |
41,66 |
Quadro 2. Fonte: Barão de Javari, Organizações e Programas Ministeriais (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889) reproduzido in Murilo de Carvalho, "As Forças Armadas na Primeira República: o Poder Desestabilizador"(Belo Horizonte: Separata do Departamento de Ciência Política, nº1, 1974), 178. |
CONGRESSISTAS MILITARES DE 1886 A 1917 |
Período |
Quantidade |
Percentagem |
DEPUTADOS |
1889 |
125 |
1,60 |
1890 |
205 |
19,03 |
1917 |
212 |
5,18 |
SENADORES |
1889 |
63 |
3,17 |
1890 |
74 |
17,58 |
1917 |
63 |
12,59 |
Quadro 3. Fonte: Murilo de Carvalho, "As Forças Armadas", 179. |
Entretanto, quando se colhe a opinião dos próprios chefes militares, aparece logo a intenção de estabelecer uma diferenciação entre as suas motivações e as dos líderes políticos civis. Caxias, por exemplo, sempre dizia que ele era "mais um militar do que um político", embora fosse por outros rotulado como o mais civil dos soldados. O principal vulto militar que pertenceu ao Partido Liberal, o Gen Manoel Luís Osório, Marquês do Herval, também dedicou sua carreira a serviço da pátria, mas procurava destacar seus motivos particulares através de pronunciamentos como o que se segue: "Quando lhe perguntarem a que partido político em nosso país eu pertenço, você deve dizer... ele não tem partido porque os partidos dividem os brasileiros. No cumprimento de minha missão, o que menos me preocupa são as conseqüências políticas ou os interesses partidários porque eu vejo apenas a honra e a dignidade da pátria, quando é enxovalhada".
O SEGUNDO IMPÉRIO 1840-1889
´Durante o longo reinado de D. Pedro II (1840‑89), o Império progrediu materialmente; o café, principal artigo de exportação, produziu alto rendimento; as cidades cresceram em tamanho e importância. A nova classe urbana e os poderosos plantadores de café começaram a desafiar o controle tradicional dos aristocratas produtores de açúcar, que se constituíam no principal sustentáculo da monarquia. Em contraposição, a outrora abastada mas agora empobrecida classe dos produtores de açúcar do Nordeste, a aliança dos produtores de café e da classe urbana, que se projetava, era favorável às mudanças. As cidades, particularmente, tornaram-se centros de agitação. Depois de 1870, novas idéias começaram a se irradiar dos centros urbanos, principalmente sobre a separação da Igreja do Estado, a liberação dos escravos e a proclamação da república. Quando a Monarquia se alheou dos três segmentos que tradicionalmente lhe proporcionavam apoio - os produtores de açúcar, a Igreja e os militares - perdeu sustentação e caiu, impotente em oferecer resistência e incapaz de encontrar quem a defendesse.´
Para entender o surgimento da mística da instituição militar no contexto da síntese acima apresentada, é necessário visualizar a evolução do Exército, da escola militar, do sistema político, da paramilitar Guarda Nacional e do impacto das guerras.
As facciosas lutas partidárias desse período revelam que “o Brasil possuía um simples partido durante o reinado de D Pedro II...com duas facções lutando pelo controle das bases do poder imperial”. Os dois maiores partidos - o Liberal e o Conservador - eram “assemelhados a famílias grandes” e suas lutas eram entrechoques cruentos “nos quais os grandes problemas e os princípios eram sacrificados em benefício de considerações políticas imediatas de obtenção do poder com o propósito de distribuição de benesses”. A estabilidade do sistema dependia da ação de D. Pedro II como árbitro, através do seu poder moderador, da lealdade do Exército, personificado em Caxias.
Durante a década de 1840, distúrbios políticos regionais e o envolvimento periódico da Guarda Nacional, particularmente pelos liberais, em problemas políticos, provocaram a interdição da referida organização em três ocasiões. A despeito deste emprego abusivo da Guarda, era necessário, de acordo com um representante do Parlamento, "contrabalançar a influência do Exército'.
Na década de 1850, a situação tinha-se estabilizado bastante de forma que os partidos políticos pressionaram o governo central para a obtenção de recursos em troca de apoio eleitoral. Os chefes elitistas dos clãs do interior buscaram alcançar o controle sobre um partido político - via de regra o Partido Conservador - enquanto os liberais tendiam a se alinhar com grupos urbanos. A influência de pessoas de destaque, de âmbito local, começou a depender de ligações na capital, de forma que as benesses partidárias passaram a substituir as estruturas constituídas pelo parentesco. Na prática, o coronel da Guarda Nacional mandava seu filho ou um parente para representá-lo no governo. Isto caracteriza o surgimento dos bacharéis, ou seja, políticos com conhecimento das leis e que misturavam partido e parentesco no exercício de suas atividades.
O ano de 1850 também assinala o começo do movimento de governo para, utilizar a Guarda Nacional na institucionalização de uma nova ordem administrativa. Nesse ano, "a Guarda Nacional foi incorporada ao poder central". Isto parecia que fora provocado por uma profunda mudança do particularismo do patrimonialismo para o universalismo da autoridade burocrática racional. Foi criado um novo Ministério da justiça para supervisionar a enorme expansão na estrutura legal que devia proporcionar os dispositivos normativos para a implementação dos métodos racionais de administração. Mas a defesa de um novo código impessoal que transcendia o particularismo da vendeta não fazia sentido na sociedade patriarcal do interior.
A Guarda Nacional, que se supunha poder facilitar a institucionalização da nova ordem de causas, estava, como já se acentuou anteriormente, sob a supervisão dos presidentes de província. Estes, por sua vez, tinham de negociar com a corte burocrática, nas figuras dos ministros da justiça e do interior. A função mais técnica na Guarda era exercida por um major do Exército. Além disso, os comandantes da Guarda com experiência no exército regular eram os que tinham maior probabilidade de atingir o objetivo da racionalização administrativa, o que levou um dos comandantes a sugerir a adoção dos padrões administrativos do exército regular para a Guarda como um todo. Esta sugestão continha importantes aplicações, considerando a possibilidade de que o exército regular podia ser mais útil na consecução do objetivo da nação armada do que a Guarda Nacional. Embora não tenha sido aceita na época, a idéia se tornou mais viável na década de 1870 com o efetivo fracasso da Guarda em atingir seus objetivos.
E a filosofia de governo de D. Pedro II? Eram bem conhecidas suas inclinações liberais. Robert Daland afirma que D. Pedro, na verdade, equilibrava-se em corda bamba "e não estava em condições de engajar-se em um programa prudente de reforma burocrática centralizada e racional". Este modo de ver parecia ignorar o objetivo principal da Guarda Nacional. Por outro lado, em face da Guarda ter falhado em executar sua reforma, D. Pedro pôs em execução um sistema de manutenção do status quo político. Teoricamente, sob sua direção, o Estado exercia o poder mas não de forma autoritária, que impusesse obediência. Pelo contrário, ele persuadia, barganhava, cooptava.
E qual era a atitude de D. Pedro com relação ao Exército? Pedro Calmon diz que "tínhamos um Imperador que - contrário à orientação política de D. Pedro I - demonstrava em relação à administração civil, às ciências e às letras, o interesse que outros monarcas dedicavam a seus exércitos". O fato de que D. Pedro era essencialmente um pacifista por natural inclinação podia constituir mais uma razão para reforçar sua convicção de que os militares deviam manter-se afastados da política. Neste aspecto há uma pequena contradição já que D. Pedro com freqüência convocava Caxias para missões políticas e cargos públicos.
O EXÉRCITO NO PERÍODO 1840-1865
Durante esse período, os soldados incorporados ao Exército continuavam provindo do rebotalho da sociedade. Um decreto da época estabelecia que os oficiais do Exercito deviam ser remunerados com 4.000 réis por todo soldado que conseguissem recrutar, sem que houvesse qualquer exigência quanto à educação ou antecedentes de natureza social. Além disso, um cidadão que tivesse recursos podia pagar 400.000 réis ou mandar um escravo em seu lugar, livrando-se da convocação. Uma conseqüência importante dessa política foi que a tropa do Exército passou a ser composta de gente de cor.
A Academia Militar continuava a proporcionar indicações seguras a respeito da doutrina oficial com relação aos objetivos do Exército. Várias reformas foram introduzidas na Academia nesse período - todas relacionadas à tentativa de associar a elite rural ao Exército, ao mesmo tempo em que "preparava cidadãos para vários destinos". As discrepâncias existentes resultaram na criação de uma escola separada, em 1855, chamada Escola de Aplicação, onde os alunos que tinham optado pela carreira militar podiam realmente dedicar-se à vida castrense. A Escola de Aplicação, localizada na Praia Vermelha, como o tempo se tornou conhecida simplesmente como Escola Militar. A antiga academia militar no Largo de São Francisco tornou-se a principal escola de engenharia. Uma escola de formação de pessoal de infantaria e cavalaria, chamada Escola de Tiro de Campo Grande, foi criada em 1859.
Nessa época, dois em cada três estudantes da academia militar iam para a Escola de Aplicação. Esses estudantes que se orientavam para a carreira militar eram "filhos de militares, de modestos funcionários, de pequenos comerciantes e de pequenos proprietários de terras. Ela não era atrativa para os filhos de grandes proprietários rurais nem para os filhos de funcionários administrativos de alto nível". Os filhos de famílias de imigrantes que chegavam ao Brasil por essa época procuravam ingressar no quadro de oficiais, porque procediam da Europa, onde a carreira militar era conceituada. Sobrenome como Muller, Trompowsky, Schmidt, Midosi e Portocarrero vieram juntar-se aos nomes de famílias tradicionais, como Mena Barreto e Lima e Silva.
Para ser declarado oficial de engenharia ou de artilharia, que equivalia a um curso universitário, o estudante recebia um diploma de bacharel da academia militar, já que estes cursos eram considerados os mais técnicos. As praças, provindas da tropa, podiam atingir o oficialato na infantaria e na cavalaria. As promoções no quadro de oficiais passaram a ser feitas por antigüidade e por merecimento e eram controladas por comissões de promoção que foram gradualmente substituindo os presidentes de província, nessa atividade. Graças aos esforços reformistas do Duque de Caxias, estes aperfeiçoamentos começaram a criar uma aura em torno do Exército, como uma instituição que funcionava de acordo com princípios técnicos, racionais e modernos. A medida que isto se passava, as vantagens que os filhos de família da elite conseguiam na carreira militar foram desaparecendo. Em conseqüência, estes rapazes "relegavam a pouco promissora carreira militar aos que tinham condição social inferior" e ao invés dela optavam por outras profissões e pelo serviço público, onde as influências familiares ainda ofereciam grandes vantagens. A reforma de 1838 constituiu‑se na última tentativa do lmpério de vincular a classe dominante ao Exército.
Os cadetes desse período não revelavam uma atitude harmoniosa em relação às normas legais, que tinha sido uma das características da geração de Caxias. É possível que os antecedentes sociais dos cadetes constituíssem um fator nesse contexto. Um outro fator era constituído pelo tipo de educação que estavam recebendo na academia militar. A tendência dos ensinamentos era demasiado abstrata, com a predominância da teoria militar francesa, até a guerra franco-prussiana de 1870. O treinamento se valia do emprego de soldadinhos de chumbo, de modelagens de fortificações e de outros recursos, sendo que os exercícios militares reais se limitavam a duas semanas, no fim de cada ano, na área de Copacabana. José da Silva Paranhos, futuro Visconde do Rio Branco, lecionava na academia e propugnava por estudos mais práticos, alertando que ensinamentos tão teóricos contribuíam para a criação de um órgão deliberativo.
O espírito irrequieto dos cadetes era bem conhecido. Eles editavam um jornal intitulado O Militar no qual censuravam o governo sobre uma série de problemas. Eles criticavam os métodos administrativos antiquados alegando que a classe dominante "evitava e até prejudicava, com uma teia inextrincável de normas e de leis... qualquer empreendimento Industrial". Outros problemas nacionais também preocupavam os cadetes, como a escravidão, a conveniência de imigração, melhoramento das comunicações, com o objetivo de melhorar o padrão da tropa do Exército. Era particularmente interessante o ponto de vista que tinham com relação á importância institucional do Exército. Uma das edições de O Militar continha o seguinte trecho:
Ninguém pode negar que a nação deve a manutenção de suas instituições à fidelidade do Exército; seu sentimento de lealdade sempre resistiu aos oferecimentos daqueles que, satisfeitos hoje na direção dos negócios públicos, clamam o povo às armas mais tarde quando as rédeas do governo são conferidas a outros; neste ambiente de corrupção generalizada de idéias e de egoísmo, o desinteressado Exército paira como uma autoridade respeitada.
Neste trecho está apresentada de forma incisiva a idéia de que o Exército tinha de proteger-se das ações impatrióticas de políticos corruptos para manter as instituições nacionais, o que passou a ser uma missão especial ou uma atribuição do Exército para finalmente transformar-se em um encargo tradicional.
Como durante o período colonial, o Exército continuou a ser utilizado em uma série de atividade não-militares. O emprego da tropa em atividades de policiamento e de guarda em áreas muito amplas impossibilitavam a realização de manobras com grandes efetivos e longa duração. Os engenheiros militares foram empenhados na construção de edifícios públicos, estradas, portos, linhas telegráficas e até de algumas fábricas. O estabelecimento de colônias militares nas áreas de fronteira foi uma outra tradição mantida durante o Império.
O IMPACTO DA GUERRA DO PARAGUAI
O Brasil travou uma guerra de pequenas proporções contra o ditador argentino João Manoel Rosas em 1852 e o conflito que não teve longa duração serviu para demonstrar a fraqueza do Exército como força de primeira linha. A Guarda Nacional também demonstrou deficiência, particularmente porque seus integrantes, donos de terras, pleitearam "isenção do serviço". A Guerra do Paraguai (1865‑70), entretanto, serviu como divisor de águas na busca histórica dos chefes militares brasileiros por sua destinação verdadeira na sociedade, já que lhes proporcionou um sentido de solidariedade corporativa. Esta solidariedade dentro da instituição, por sua vez, facilitou o surgimento de um espírito de corpo que extravasou os limites da organização ‑ chegando a ser uma mística ‑ e impulsionou os chefes militares no cenário político nacional, donde não se afastaram mais, em caráter definitivo. A guerra, de considerável envergadura e duração, possibilitou um teste nas estruturas imperiais, consideradas deficientes. O conceito de nação armada foi empregado para estimular o apoio ao esforço de guerra e o legendário Caxias foi convocado para comandar as forças brasileiras e por fim todas as forças da Tríplice Aliança.
Os chefes militares viram de forma impatriótica o comportamento dos civis durante a Guerra do Paraguai. A elite proprietária de terras evitou servir de todas as maneiras possíveis, isto é, fazendo-se substituir por escravos, doando provisões à Guarda Nacional e utilizando outros artifícios. Alguns dedicaram-se ao enriquecimento ilícito, ao fornecer suprimentos ao Exército. No início da guerra o Gabinete liberal tentou impedir a nomeação de Caxias, que era ligado ao Partido Conservador, para o comando das forças brasileiras. Caxias era considerado um homem providencial, de forma que ele acabou sendo nomeado. Os líderes liberais, entretanto, enfureciam Caxias com suas críticas através da imprensa. Brandindo a espada da honradez, Caxias forçou D. Pedro a mantê-lo como comandante e dissolver o Gabinete liberal ou a instituí-lo. D. Pedro optou pela substituição do Gabinete; os liberais consideraram o ato como uma derrota dos métodos democratas, com vinculações militaristas e caudilhistas.
O DECLÍNIO DA GUARDA NACIONAL
O declínio da Guarda Nacional, considerada a principal força com o encargo de dar continuidade ao ideal de nação armada e que também era vista como um exército de segunda linha, apresenta grande importância no soerguimento do Exército depois da Guerra do Paraguai. O fracasso da guarda na consecução de seus objetivos, relacionado com a inabilidade da burocracia em se desenvolver gradualmente, segundo diretrizes racionais, em ritmo mais apressado, foi atribuído ao fato de que a instituição estava radicalmente comprometida assim como dependia de serviços não remunerados de civis. A idéia de que a Guarda poderia servir para de forma discreta socializar o segmento não elitista da população nas instituições públicas falhou porque essa parcela da plebe se recusou a ser coagida para o serviço. O serviço sem remuneração era desarrazoado porque interferia nas necessidades pessoais do cidadão.
Aqui, novamente, aparecia a grande importância do legado colonial. Como foi destacado por Michael Conniff, "a cidade do período colonial tinha duas diferentes tradições legais potencialmente conflitantes, a patrimonial e a municipal". Como já foi observado, o governo patrimonial baseava-se na disposição da elite rural de administrar em nome do rei. O governo municipal, que vinha do tempo dos visigodos, depositava o poder da autoridade nas mãos dos mais velhos da localidade sendo que o relacionamento com o rei se dava através do foro. A questão que se levantava era se a Guarda iria servir aos objetivos da nação-estado com mais zelo do que os das municipalidades. A resposta era que não, aparentemente.
Na prática, então, a Guarda foi de forma inexorável atraída para a política faccionária, já que os proprietários de terras que ocupavam posições oficiais valiam-se dela para tirar vantagens políticas. Constituía rotina os oficiais serem dispensados por razões políticas e as funções eram trocadas por votos. Como a política estava solapando a impessoalidade e o formalismo da norma legal, os cidadãos estavam se recusando a prestar serviços convencionais sem remuneração, e a guerra tinha demonstrado a inutilidade militar da Guarda. Por isso, em 1873, foi aprovada uma lei que vedava o emprego da Guarda na execução de atividades governamentais. Entretanto, a Guarda não foi dissolvida por completo. Como enfatizou um deputado federal havia uma razão especial, pois "uma ação dessa natureza levantaria suspeitas, já que se percebe que o governo está empregando o exército regular para firmar sua autoridade". A Guarda se transformou mais em um clube para a elite política. Ademais, segundo John Wirth, "com suas centenas de brigadas e milhares de oficiais comissionados", as comissões federais que nela atuavam continuavam a ser "uma fonte de benesses e a conferir prestígios aos figurões locais em uma sociedade com escalonamento consciente".
Teve grande significação simbólica a aprovação da lei de conscrição universal, um ano depois da lei que havia limitado a expressão da Guarda. No contexto da evolução histórica das forças terrestres brasileiras e do conceito de nação armada, estas leis parecem apresentar importância memorável. Como disse um historiador militar:
A nação armada demonstrou, com o exemplo paraguaio, suas imensas vantagens. Os estadistas do Império aprenderam a lição. Uma lei de 1874 instituiu o serviço militar obrigatório.
O resultado era, ao que parece, que o Exército agora tinha-se tornado a principal força militar nacional e, como tal, era uma instituição destinada a dar continuidade à tradição da nação armada.
A Guarda Nacional só é extinta com o Decreto nº 1.790, de 12 de janeiro de 1918, já como reflexo da 1ª Guerra Mundial, quando passa a constituir o Exército de 2ª Linha, e se desloca do âmbito do Ministério do Interior e Justiça, para o da Guerra. |